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RESENHA|Como as Democracias Morrem: um manual de urgência para tempos de normalização do autoritarismo

Publicado e Editado Por Raul Silva / O Estopim – https://www.oestopim.com/

 

O Estopim – Publicado originalmente em 2018, o livro Como as Democracias Morrem, dos cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, adquire renovado vigor interpretativo no contexto político de 2025, não apenas como análise retrospectiva, mas como instrumento de leitura crítica do presente. A obra, ancorada na análise densa do cenário político norte-americano contemporâneo — em particular, a ascensão e consolidação de Donald Trump —, transcende sua matriz empírica inicial para se afirmar como uma referência teórico-analítica indispensável à compreensão das transformações institucionais e da deterioração normativa que têm afetado regimes democráticos em diferentes geografias e escalas de poder.

A tese central rompe com o modelo teleológico clássico segundo o qual as democracias se encerram abruptamente mediante a ação de forças externas ou golpes militares. Em lugar disso, Levitsky e Ziblatt propõem a ideia de um declínio incremental, operacionalizado por meio de processos formais — eleições, nomeações, reformas legais — conduzidos por líderes que, embora legitimados pelo sufrágio, se dedicam à corrosão paulatina das salvaguardas constitucionais e das normas informais que sustentam o pacto democrático. A substituição simbólica do tanque pelo tweet, da censura explícita pela desqualificação sistemática da imprensa, da ruptura legislativa pelo esvaziamento deliberado do Congresso, constitui um repertório de práticas que delineiam o modus operandi do autoritarismo do século XXI.

 

A estrutura analítica da obra articula-se a partir de quatro vetores que funcionam como indicadores de propensão autocrática: a rejeição das regras do jogo democrático; a negação da legitimidade dos adversários políticos; a tolerância — ou mesmo o estímulo — à violência contra opositores; e a disposição para restringir liberdades civis fundamentais. Essa tipologia, fundamentada na análise empírica de múltiplos contextos — da Venezuela de Hugo Chávez à Hungria de Viktor Orbán, passando pela Turquia de Erdogan e os próprios Estados Unidos sob a égide trumpista —, permite inferir a existência de um padrão transnacional de degradação institucional, calcado na naturalização progressiva de abusos de poder e no enfraquecimento das garantias democráticas.

 

No ano de 2025, a atualidade da obra se intensifica. A volta de Trump à presidência dos Estados Unidos opera como catalisador da transnacionalização da lógica autoritária delineada por Levitsky e Ziblatt. A convergência entre o trumpismo e o bolsonarismo evidencia a capacidade de adaptação e reconfiguração desses movimentos segundo padrões compartilhados de captura institucional, mobilização emocional e manipulação informacional. Embora o Brasil não seja objeto direto da análise dos autores, o país figura, hoje, como uma extensão quase experimental do arcabouço teórico desenvolvido na obra. A transformação do bolsonarismo em apêndice regional do trumpismo demonstra o caráter replicável dessas formas de poder autoritário.

 

Nesse cenário, o Brasil se vê no epicentro de uma ofensiva que conjuga desinformação industrializada, aparelhamento institucional, e submissão diplomática. As articulações para anistiar Jair Bolsonaro, as reiteradas tentativas de enfraquecer o Supremo Tribunal Federal, os constantes ataques ao sistema eleitoral, e a atuação internacional de Eduardo Bolsonaro como representante informal da extrema-direita global, compõem uma constelação de práticas que mantém a arquitetura democrática apenas como fachada. Trata-se de uma simulação institucional, em que os dispositivos legais permanecem, mas seu conteúdo normativo é manipulado para fins autocráticos, transformando o Estado em instrumento de revanche ideológica.

 

No plano internacional, Trump emprega o poder geopolítico dos Estados Unidos como ferramenta de coerção, exigindo realinhamentos estratégicos de países considerados periféricos. A pressão para que o Brasil abandone o BRICS, por exemplo, revela a dimensão sistêmica do novo autoritarismo: ele não se contenta com a domesticação da política interna, mas exige a remodelação da ordem mundial sob a lógica do unilateralismo coercitivo. A política externa brasileira, subordinada a interesses de clãs familiares e influências estrangeiras, configura uma ruptura grave com os princípios da autodeterminação dos povos e da soberania nacional, conforme consagrados no direito internacional e no arcabouço constitucional brasileiro.

 

Como as Democracias Morrem impõe-se, nesse contexto, como um dispositivo de resistência teórica e prática. Ao enfatizar que a resiliência democrática não se assenta exclusivamente sobre a robustez das instituições, mas depende do compromisso normativo dos atores políticos e da vigilância ativa da sociedade civil, Levitsky e Ziblatt reconvocam a tradição republicana como horizonte de engajamento cívico. A democracia, afirmam os autores, sobrevive não pela inércia, mas pelo exercício constante da moderação, da responsabilidade institucional e do respeito à pluralidade. Quando essas virtudes são abandonadas em nome do poder, abre-se o caminho para a erosão das liberdades públicas.

 

Ao longo de sua exposição, os autores demonstram como a fronteira entre regimes democráticos e autocráticos se torna fluida em contextos de polarização extrema. Essa fluidez se manifesta, entre outros sintomas, pela conversão do dissenso em ameaça, pela substituição do adversário pelo inimigo, e pela normalização de mecanismos excepcionais de governo. No Brasil contemporâneo, essa descrição adquire contornos alarmantes: a descredibilização das urnas, a tentativa de cooptação do Judiciário, e a permanente tensão institucional entre poderes constituídos sugerem que o país atravessa um processo de inflexão democrática cuja reversibilidade depende, em larga medida, da mobilização cidadã e da firmeza das instituições ainda resistentes à captura.

 

A obra de Levitsky e Ziblatt, assim, transcende sua condição de análise empírica do caso norte-americano para se converter em uma gramática de resistência. Seu valor não está apenas no diagnóstico preciso, mas na oferta de um léxico crítico para a nomeação das práticas autoritárias que se escondem sob a roupagem da legalidade. O alerta não é panfletário, nem especulativo. É resultado de um esforço de sistematização teórica, com base em décadas de pesquisa e na observação comparada de regimes políticos em múltiplas latitudes.

 

Como as Democracias Morrem deveria ser leitura obrigatória não apenas em universidades e centros de pesquisa, mas em todos os espaços em que se pensa e se decide o futuro da vida coletiva. Compreender os sinais de erosão democrática não é um luxo acadêmico — é uma necessidade vital. A democracia não se desfaz em um único gesto: ela é minada em processos silenciosos, legitimados por pactos oportunistas e pela passividade de quem assiste. Levitsky e Ziblatt nos convocam, com precisão e coragem, a romper esse silêncio. Porque o silêncio, nesses tempos, é cúmplice. E essa convocação, hoje, não poderia ser mais urgente.

 

Edição: O Estopim / Muira-Ubi Web Rádio

 

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